Por Ricardo Ramos (*)
No último fim de semana, uma apresentação da cantora Letrux em um festival do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Natal, chamou atenção quando um livro cenográfico foi utilizado como parte de uma performance com chamas. Embora Letrux tenha explicado que o livro fazia parte de um número de mágica e não era uma Bíblia, o ocorrido reacendeu discussões sobre o uso de símbolos religiosos em performances artísticas. Mas, colocando de lado o contexto polêmico da apresentação, essa situação levanta uma reflexão importante: a Bíblia e a simbologia do fogo andam juntas em muitos aspectos da fé. É uma conexão que ecoa por séculos, trazendo imagens de luz e renovação. Vamos explorar como a Bíblia usa o fogo como metáfora e como suas palavras podem, de fato, incendiar nossos corações e transformar vidas.
UMA RELAÇÃO PROFUNDA E ANTIGA
Na Bíblia, o fogo é uma presença constante, um símbolo poderoso que transcende as páginas e gera impacto. Desde o Antigo Testamento, o fogo aparece como manifestação de Deus e expressão de Sua vontade. Foi com fogo, por exemplo, que Deus Se apresentou a Moisés na sarça ardente (Êxodo 3:2), quando a planta queimava, mas não se consumia. Essa imagem marcante carrega consigo a ideia da presença divina – algo poderoso, eterno e impossível de ser apagado.
O fogo bíblico representa a santidade e a pureza de Deus, que consome o que é impuro e traz luz ao que está em escuridão. Em diversas passagens, o fogo não é apenas um elemento destruidor; é um instrumento de purificação. A ideia do “fogo purificador” aparece várias vezes nas Escrituras, sugerindo que Deus usa essa força para refinar e renovar Seus seguidores. Em Malaquias 3:2-3, por exemplo, o profeta descreve Deus como o “ourives” que purifica o ouro pelo fogo, uma analogia à transformação espiritual.
O FOGO COMO METÁFORA PARA A PALAVRA DE DEUS
Assim como o fogo consome e transforma, as palavras da Bíblia são descritas como capazes de penetrar no mais profundo do ser humano. Em Jeremias 23:29, Deus pergunta: “Não é a minha palavra como fogo?” Essa questão retórica ressalta o poder transformador das Escrituras. A Palavra de Deus age no interior do homem, queima e ilumina as sombras do espírito, revelando verdades que muitas vezes preferiríamos evitar. É um fogo que consome o orgulho, a inveja, e todo tipo de impureza.
A metáfora do fogo é especialmente poderosa no Salmo 119, onde o salmista exclama: “A tua palavra é lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho.” Aqui, o fogo se torna uma chama que guia, que ilumina a jornada, oferecendo uma direção que muitas vezes falta em meio às incertezas da vida. A Bíblia, então, não é apenas um livro, mas uma lanterna que arde com sabedoria e direcionamento.
QUANDO O FOGO SAGRADO ENCONTRA O CORAÇÃO
Para aqueles que se aproximam das Escrituras, o fogo das palavras divinas pode se manifestar no coração como um impulso transformador. Em Lucas 24:32, após a ressurreição de Jesus, dois discípulos discutem entre si e dizem: “Porventura não ardia em nós o nosso coração, quando pelo caminho nos falava, e quando nos abria as Escrituras?” Essa passagem é um exemplo de como a Bíblia provoca uma resposta profunda na alma. Ela não é lida como um livro qualquer; suas palavras têm o poder de acender algo dentro de cada leitor, algo que não pode ser ignorado.
Esse “ardor no coração” não significa apenas entusiasmo ou excitação; ele implica uma resposta espiritual intensa. É como uma chama que, uma vez acesa, não se apaga facilmente. Esse efeito é o resultado de uma conexão viva com o conteúdo sagrado, que desperta um desejo de transformação, de tornar-se melhor, mais próximo de Deus, mais alinhado com os ensinamentos divinos. Quem lê a Bíblia com sinceridade percebe que suas palavras ardem, gerando um desejo de justiça, amor e humildade.
A BÍBLIA: UM CONVITE À REFLEXÃO E RENOVAÇÃO
Assim como o fogo tem o poder de destruir e reconstruir, as Escrituras possuem a habilidade única de expor nossas falhas e, ao mesmo tempo, nos oferecer redenção. Ao lidar com a Bíblia, o leitor não permanece o mesmo; ele é confrontado por ensinamentos que pedem mudança. Os versículos, ao arderem no coração, exigem uma resposta. Não é possível ignorar a força das Escrituras, assim como ninguém ignora o calor do fogo.
O livro sagrado é, portanto, um agente de purificação, assim como o fogo do ourives que purifica o ouro. Ele testa, molda e fortalece. Ao aceitar a Bíblia como um fogo que purifica, o fiel se abre para uma vida de crescimento e transformação. Mesmo os versículos que trazem mensagens difíceis ou que exigem sacrifício vêm carregados dessa chama sagrada que visa o bem final. É uma chama que nos convida à reflexão e, muitas vezes, à ação.
QUEIMAR O LIVRO OU ARDER EM SEUS ENSINAMENTOS?
Voltando à performance de Letrux, é natural que a imagem do fogo em um livro desperte emoções diversas. Para alguns, a associação com a Bíblia pode parecer provocadora ou ofensiva; para outros, pode ser uma metáfora interessante para se pensar no poder transformador do texto sagrado. Mas, acima de tudo, o episódio oferece uma oportunidade para refletir sobre o que realmente significa “queimar” um livro como a Bíblia. O ato literal de queimá-la seria, certamente, um gesto de rejeição, uma tentativa de eliminar sua mensagem. Mas quando permitimos que as palavras da Bíblia “ardam” em nossos corações, estamos fazendo algo bem diferente.
Esse fogo simbólico não destrói; ele edifica, purifica e transforma. A Bíblia é o livro que, de geração em geração, acende as mentes e inflama as almas. Ela chama o leitor para mais perto de Deus, para mais perto de uma vida em harmonia com os ensinamentos divinos. Ao mergulhar em suas páginas, cada leitor é convidado a se tornar como aquele ouro, purificado no fogo do Espírito, pronto para refletir o amor e a justiça de Deus.
Que, portanto, nos permitamos ser consumidos pelo fogo simbólico da Bíblia, não para destruí-la, mas para deixar que suas chamas nos transformem por dentro. Pois, no fim, a Bíblia não é um livro qualquer. Ela é a chama eterna, a palavra viva, o fogo que jamais se apaga.