Por Natália Brito (*)
A Igreja Católica anunciou na última segunda-feira (14/06) o início do processo que pode levar o arquiteto Antoni Gaudí à canonização. Famoso por sua profunda religiosidade e pelo legado arquitetônico que moldou a paisagem de Barcelona, Gaudí é o nome por trás da Basílica da Sagrada Família — considerada seu testamento espiritual e artístico. O reconhecimento marca o primeiro passo para torná-lo oficialmente um santo da Igreja, quase um século após sua morte, em 1926.
Conhecido por fundir fé e arte de maneira única, Gaudí transformou a arquitetura modernista catalã em uma expressão de devoção. A Sagrada Família, iniciada em 1882, continua em construção e se tornou símbolo não apenas de sua genialidade técnica, mas também de sua entrega religiosa. Nos últimos 12 anos de vida, ele se dedicou exclusivamente à obra, vivendo em humildade e oração no próprio canteiro de obras. Embora a expectativa inicial fosse concluir a igreja até 2026, ano do centenário de sua morte, os impactos da última pandemia nos recursos financeiros provenientes do turismo tornaram essa meta incerta.
Além da Sagrada Família, Gaudí deixou sua marca em diversos monumentos que compõem o imaginário urbano de Barcelona. O Parque Güell, inicialmente concebido como um condomínio-jardim, tornou-se um espaço público em que o uso de formas orgânicas, mosaicos coloridos e integração à paisagem natural revelam uma arquitetura que dialoga com a criação divina. A monumental escadaria de entrada, a salamandra de trencadís e os bancos sinuosos são elementos que traduzem sua visão mística do mundo.
Outro ícone da obra de Gaudí é a Casa Batlló, reformada entre 1904 e 1906. Localizada no Passeig de Gràcia, a residência exibe uma fachada que parece pulsar, com curvas ondulantes, janelas assimétricas e telhado que lembra o dorso de um dragão. Cada detalhe da construção reflete a obsessão do arquiteto por formas naturais e simbolismo cristão, fazendo da casa um verdadeiro manifesto artístico.
A Casa Milà, também conhecida como La Pedrera, é outra joia modernista projetada por Gaudí e finalizada em 1912. Com sua estrutura inovadora, ausência de linhas retas e uma cobertura povoada por chaminés esculturais, a edificação desafia convenções até hoje. Sua planta livre e soluções estruturais pioneiras serviram de inspiração para gerações de arquitetos. A obra foi inicialmente criticada por sua ousadia, mas acabou reconhecida como Patrimônio Mundial pela Unesco, assim como o Parque Güell e a Casa Batlló.
O título de “arquiteto de Deus”, não é mero artifício retórico. Ele exprime com precisão a simbiose entre a fé e a estética que define o legado de Antoni Gaudí. Seu trabalho não foi apenas técnico, mas profundamente espiritual, impulsionado por um ideal cristão que buscava glorificar a criação divina por meio da arte. Sua possível canonização reabre o debate sobre a presença do sagrado na arquitetura e sobre como a arte pode ser instrumento de fé.
Mais do que um arquiteto inovador, Gaudí representa uma visão que hoje parece esquecida: a da arte como expressão do transcendente. Em tempos de excesso de funcionalismo e da banalização do espaço urbano, seu exemplo nos convida a repensar o propósito daquilo que construímos. A pergunta que fica é se ainda somos capazes de reconhecer a santidade no traço humano que busca tocar o eterno.