Por Leonardo Anacleto Rodrigues (*)
O Brasil vive um cenário de hiperjudicialização. Segundo o relatório Justiça em Números 2024, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foram cerca de 39,4 milhões de novos processos apenas em 2024, o maior volume já registrado. Dentro desse universo, as ações de indenização por perdas e danos – especialmente por dano moral – ganharam um protagonismo que começa a preocupar magistrados, advogados e toda a sociedade.
Só no primeiro semestre de 2024, foram aproximadamente 1,7 milhão de processos por dano moral, o equivalente a 9,6 mil novas ações por dia. Quando praticamente qualquer frustração passa a ser tratada como ofensa indenizável, já não se fala apenas em acesso à Justiça, mas em banalização da responsabilidade civil.
Na área da saúde, o cenário é ainda mais delicado. Levantamentos recentes indicam que os processos por suposto “erro médico” cresceram 506% entre 2023 e 2024, saltando de pouco mais de 12 mil para cerca de 74 mil ações envolvendo danos decorrentes da prestação de serviços de saúde Na saúde pública, os casos relacionados ao tema na 1ª instância passaram de 76.836 em 2020 para 162.046 em 2024, aumento de 110,9%. Em alguns estados, cerca de um terço de todo o gasto com medicamentos no SUS já decorre de decisões judiciais.
Na advocacia voltada à responsabilidade civil médica, esse movimento se traduz em uma realidade diária. Em boa parte das ações que recebemos em nosso escritório, há um padrão que se repete: pedidos iniciais de indenização em valores muito acima dos parâmetros usualmente aplicados pelos tribunais, acompanhados de prova técnica frágil ou incompleta.
Não é raro que a petição inicial chegue sem prontuário completo, sem relatório médico detalhado e sem qualquer documento que demonstre, com um mínimo de rigor, o nexo entre o atendimento prestado e o dano alegado. Em alguns casos, sequer há pedido de perícia médica. A narrativa da dor e da frustração – legítima do ponto de vista humano – é tratada como se bastasse, por si só, para gerar o dever de indenizar, invertendo a lógica básica da responsabilidade civil, que exige prova do ato ilícito, do dano e do nexo causal.
Também é comum que complicações conhecidas da literatura, e explicadas em termo de consentimento, sejam apresentadas como “erro médico” apenas porque o resultado não foi o idealizado. A medicina trabalha com riscos e probabilidades, não com garantias. Transformar todo desfecho desfavorável em culpa do profissional ignora a natureza da atividade médica e empurra o sistema para um padrão de “medicina defensiva”, com mais exames, burocracia e custo, sem necessariamente melhorar a qualidade do cuidado.
Do outro lado, muitos hospitais e clínicas, diante de pedidos exagerados e do temor de bloqueios judiciais ou repercussão negativa, acabam optando por acordos precoces mesmo quando a prova é fraca. No curto prazo, essa escolha pode parecer financeiramente racional; no longo prazo, alimenta a sensação de que “vale a pena tentar”, reforçando o ciclo de demandas infundadas ou superdimensionadas e aumentando o custo de operação de toda a cadeia de saúde.
Isso não significa negar o direito de pacientes e familiares que efetivamente sofreram danos relevantes. Pelo contrário: quando tudo vira dano moral, os casos realmente graves correm o risco de ser nivelados por baixo. O instituto perde credibilidade, e o próprio caráter pedagógico das condenações se esvazia. Em vez de servir para corrigir condutas e fortalecer a segurança do paciente, a responsabilidade civil passa a ser percebida como uma espécie de loteria.
A experiência prática e a produção acadêmica mostram que é possível trilhar outro caminho. Nos últimos anos, tenho me dedicado a estudar e escrever sobre temas ligados à responsabilização, governança e segurança jurídica em diferentes setores. Em comum, há sempre a mesma premissa: a Justiça deve proteger o vulnerável e punir condutas ilícitas, mas sem perder a noção de proporcionalidade e bom senso.
No campo específico da saúde, isso passa por fortalecer a cultura de documentação adequada, consentimento informado, protocolos clínicos e auditoria interna; e, de outro lado, por estimular que pacientes e advogados busquem orientação técnica qualificada antes de transformar qualquer insatisfação em ação indenizatória. A perícia bem conduzida, a análise minuciosa do prontuário e o respeito aos parâmetros jurisprudenciais na fixação do quantum são essenciais para separar o que é risco inerente da atividade médica daquilo que é efetiva falha de conduta.
Concluo com uma defesa simples: precisamos resgatar o bom senso. A banalização das ações de indenização por perdas e danos não interessa a ninguém – nem ao paciente verdadeiramente lesado, nem ao profissional sério, nem ao Judiciário já sobrecarregado. Uma assessoria jurídica e técnica especializada, tanto para instituições de saúde quanto para pacientes, é fundamental para construir soluções equilibradas, baseadas em prova consistente e em expectativas realistas. Só assim preservaremos, ao mesmo tempo, o direito de reparação e a sustentabilidade do sistema de saúde e de Justiça no Brasil.
(*) Leonardo Anacleto Rodrigues é advogado, sócio do Anacleto Demaria Advogados e Conselheiro seccional da OAB/MG
























