Por Walter Biancardini
Gastamo-nos ao longo da semana, eu e o amigo leitor, analisando e resmungando sobre nossas misérias democráticas cotidianas; vociferamos sobre os abusos de inomináveis, agendas lacradoras internacionais, nossos bolsos modelados ao nível de anorexia grave e tantos outros percalços que, ao frigir dos ovos – nenhum trocadilho jurídico, por favor – temos a impressão de jamais havermos conhecido outra vida, além da favela psíquica em que fomos aprisionados.
Vovó já dizia que “o que é do berço, só a tumba tira” e assim sugiro, neste domingo, esquecermos um pouco os dias presentes e nos refugiarmos em lembranças mais doces, em verdadeira fuga epicurista, mas salvadora, de nosso equilíbrio mental.
Eu, por exemplo, posso esconder-me com tranquilidade nas ensolaradas manhãs de minha infância quando, ao acordar – e ainda com um copo de Ovomaltine nas mãos – ir à porta de casa e deparar-me com meu pai, debruçado sobre o motor de seu carro, regulando o carburador. E o melhor de tudo: ao perceber que eu estava ali, ele me chamava: “Pega aquele alicate e segura esse arame aqui!”
Ainda um fedelho, eu subia pelo para-choques do carro e ajoelhava-me sobre o radiador, obedecendo às ordens do patriarca. E tal função era apenas o início, pois logo uma série de procedimentos, que não apenas me encantavam – ensinavam, também – eram feitos e eu sentia-me como um experiente mecânico, a sanar as falhas daquele enorme motor, bem na minha frente.
E eu tirava os giclês, mergulhava-os na bacia cheia de gasolina pincelando-os para tirar a sujeira, sem esquecer de soprá-los, ao final, para que nada o entupisse novamente. Regulava a altura da boia, regulava a mistura – “até que o pé do carburador fique gelado e suado”, ensinava meu pai – e, por fim e vitorioso, regulava a marcha lenta para ouvir o murmúrio daqueles oito gigantescos cilindros ronronando suavemente. Era a glória!
Finda a lida, era hora de ser recompensado e a convocação não falhava: logo, minha mãe e a coleção de irmãos, que gastavam seus dias dando-me cascudos, estavam reunidos dentro do carro, para um passeio. A arrumação no mesmo não era nada democrática: os fedelhos sentam lá atrás – a melhor das hipóteses era quando, porventura, meu pai tivesse uma daquelas antigas “station wagon” com laterais em madeira. Assim, poderíamos ir no compartimento de carga, nos divertindo em rolar uns sobre os outros a cada curva que houvesse.
Parar para comer milho cozido era inevitável, bem como, para mim que era o caçula, ser presenteado com um “João-Bobo” – aqueles bonecos de encher, com areia na base, que podíamos socar e ele sempre voltaria à sua posição original. Era isso ou aquele burrinho, montado sobre uma base a qual, apertando o fundo da mesma, ele se “desmantelava” como que desmaiado, para depois reerguer-se tão logo soltássemos o botão.
Nosso domingo terminava em casa, nos engordativos almoços e no infalível programa do Sílvio Santos, distribuindo automóveis da Vimave aos fregueses do Carnê do Baú – desde que “rigorosamente em dia” com suas mensalidades. Depois vinha o hilariante Show de Calouros, o Roda Pião e – inevitável – a hora de dormir.
Este era o momento mais triste: pegava meu livro Contos da Carochinha, de Malba Tahan, e lia algumas linhas até dormir o doce sono da infância.
Creio que só acordei hoje, subitamente esquecido na aridez da velhice, pobreza e solidão.
Como uma vida inteira se passou e eu não vi?
(*) Walter Biancardine é jornalista, analista político e escritor. Foi aluno do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, autor de três livros e trabalhou em jornais, revistas, rádios e canais de televisão na Região dos Lagos, Rio de Janeiro