Por Amauri Meireles (*)
Há poucos dias, o ministro da Justiça e Segurança Pública, defendeu a necessidade de alteração na Constituição, visando garantir o financiamento de um Sistema Único de Segurança Pública (Susp), semelhante ao Sistema Único de Saúde (SUS).
De início, convém lamentar que, já algum tempo, no Brasil, qualquer debate sobre temas fundamentais tem um acentuado ingrediente ideológico, reduzindo a efetividade na discussão, porque o interesse social é substituído pelo interesse político-partidário. A querela sempre começa com uma pergunta: a idéia, proposta, sugestão, é burguesa ou proletária? Uma aberração, por certo!
No caso da alteração, um lado manifestou o acerto, apresentando, dentre outros argumentos, os recursos orçamentários e extraorçamentários direcionados para a Saúde; de outro, a percepção de que seria uma manobra, do atual governo, para aumentar seus poderes para intervir nessa área.
Contra-argumentando, uma ala afirma que, a constitucionalização do SUS permitiu que ONGs recebessem recursos privados na ordem de R$ 37 bilhões em 2019 e, entre 2010 e 2018, os repasses federais para ONGs totalizaram R$ 118,5 bilhões, uma média de pouco mais de R$ 13 bilhões anualmente; outra ala discute esses repasses, em razão de duvidosa postura e de procedimentos de certas ONGs, em relação à incorruptibilidade: há prestação de contas de todo esse dinheiro?
Quanto à possível intervenção, ouvem-se afirmações de que ela se processaria, apenas no controle de repasses (que seriam incrementados) e na coordenação operacional das diretrizes, das políticas e das estratégias, visto que, atualmente, órgãos policiais, nos três níveis, trabalham de forma compartimentada, sem sincronia, sintonia. Ou seja, hoje falta interação, que muitos, equivocadamente, falam “integração”.
Quanto ao fato de a União realizar trabalhos de polícia (engolindo as polícias estaduais), a realidade fática mostra que a União já o faz nas fronteiras secas e molhadas, em portos e aeroportos, em estradas federais, em locais de degradação ambiental, etc.
Some-se a isso, o fato da Polícia Federal (Polícia Judiciária da União) realizar trabalhos de Polícia Ostensiva, com prejuízos para sua atividade-fim, e as Forças Armadas realizarem, açodadamente, operações de GLO, pelo fato de a Força Nacional não ter reconhecimento constitucional.
Então, sob certa forma, se a União pretende avocar os trabalhos de contenção da criminalidade e sustinência de desastres, é um retrocesso, para não dizer um tiro no pé.
Fugindo da abordagem político-ideológica, apresentamos nosso entendimento técnico sobre essa questão, que, sem dúvida, pode ser contestado, até mesmo por competentes técnicos dessa área.
Entenda-se, então, como contribuição ao debate.
Creio que a ideia de inserir o Susp – criado desde 2018 – na Constituição, é vantajosa sob os aspectos de recursos e de coordenação, além de dar continuidade à sistematização de atividades em áreas críticas, que já constam em nossa Carta Magna, por exemplo: saúde, seguridade social, educação, cultura, ciência, tecnologia e inovação, emprego, viação, etc., já estão lá!…
Uma ala tem razão em lançar interrogações sobre essa invulgar proposta, que, à primeira vista, tem ares de inusitada benesse. Contudo, o pessimismo exagerado – o que é mostrado tem um propósito maligno oculto – traz angústia, inquietação, tensão.
No caso, particularmente, “pago para ver”, se a esta ideia/proposta se juntarem outras providências.
Por exemplo, se esse sistema vai atuar na contenção da ameaça-criminalidade, no vértice para onde fluem causas e efeitos dessa e de outras mazelas sociais, seria interessante que tivesse a denominação de Sistema de Salvaguarda Social (SSS).
Isso está no fato de a grande preocupação da sociedade ser com o “quê” está acontecendo, que é importante, mas não é fundamental. Primordial é estar ocupada em controlar causas e mitigar efeitos, vale dizer, estar ocupada com o “por quê” está acontecendo.
E essa ocupação não é tarefa dos órgãos do Sistema de Salvaguarda Social e, sim, dos órgãos que fazem parte do Sistema de Inteiração (isso, com “i”) Social, ou seja, aqueles que integram o Sistema de Seguridade Social (Saúde, Assistência, Previdência) e o Sistema de Evolução Social (educação, cultura, esporte, lazer, energia, transporte, saneamento, etc.).
Quando alguns órgãos do Sistema de Inteiração Social não estão presentes em determinada localidade, ou, em havendo, funcionam de forma anômala, surge a Distopia Estatal. Quanto maior essa distopia, maior será o trabalho dos órgãos de Salvaguarda Social, ou seja, das Polícias.
Logo, é interessante a inserção do Sistema de Salvaguarda Social na Constituição, mas não é o suficiente.
Atualmente, há enorme cobrança dos órgãos deste sistema, enquanto pouco ou quase nada se cobra dos órgãos de Inteiração Social. Ou seja, a conta gerada pela crescente elevação da sensação de insegurança, decorrente do aumento de causas e efeitos da criminalidade, está sendo mandada para o endereço errado.
Enfim, a discussão inicial sobre o Sistema de Salvaguarda Social poderia derivar para a hipótese de ser criado um efetivo Sistema de Defesa Social (diferente da desgastada e equivocada expressão “segurança pública”).
O protagonismo seria do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Ministério do Desenvolvimento Social e, ainda, com a presença de representantes de órgãos afins, visando a identificar causas e efeitos de vulnerabilidades e ameaças (não somente o crime) ao corpo social e, também, coordenar ações e operações de controle e de mitigação.
Além disso, através desse Novíssimo Sistema de Defesa Social, a União poderia repassar recursos para operacionalização de planos, programas e projetos que objetivassem não só a contenção da criminalidade, mas, também, a redução da distopia estatal e outras situações identificadas como causa ou efeito de elevação da espiral da violência.