Por Walter Biancardine
No alto do monte Moriá, o velho Abrahão ergue a faca sobre o filho da promessa; um silêncio brutal paira sobre a cena. Isaac, o herdeiro tão esperado, está deitado sobre a lenha do holocausto – e não há um só protesto, não há fuga: apenas a lenha, o cutelo, o altar improvisado e uma obediência absurda. É nesse exato instante, nesta fração de segundo entre o gesto e o golpe, que a história da salvação ganha sua primeira grande sombra da cruz.
Por óbvio, Deus nunca quis o sangue de Isaac. Mas desejou que Abrahão, o pai da fé, olhasse o abismo entre a criatura e o Criador e confiasse. Mais do que isso: quis que o mundo visse naquela cena, o ensaio de algo muito maior – o episódio não é apenas um teste, é uma profecia.
Aquele monte, séculos depois, receberia outro Filho, também unigênito, também carregando o instrumento de sua própria morte, também silencioso diante do sacrifício. Mas desta vez, o cutelo não seria detido.
A analogia entre Isaac e Cristo não é novidade deste que vos escreve mas, sim, antiga como a própria Tradição. Os Padres da Igreja leram o Antigo Testamento com olhos pascais, e viram no sacrifício de Isaac uma “figura”, um tipo – termo técnico da teologia antiga – da Paixão do Senhor.
Santo Agostinho, em sua obra “Cidade de Deus”, chega a dizer que “Isaac carregava a lenha para o holocausto, assim como Cristo carregava a cruz.” (Civ. Dei, XVI, 32). O paralelo é direto, cru, real. Orígenes, bem antes, foi mais fundo ainda: viu em Isaac não um menino amedrontado, mas um jovem consciente que, ao entregar-se à morte, prenuncia o Cristo que disse: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou espontaneamente.” (Jó 10,18).
Não se trata, portanto, de um simples jogo de espelhos entre Antigo e Novo Testamento. É mais: é a revelação progressiva, encadeada, de um plano eterno. O cordeiro preso pelos chifres nos arbustos – aquele que substitui Isaac no altar – representa a humanidade de Cristo, enredada na madeira da cruz.
Gregório de Nissa, irmão de Basílio Magno e juntamente a Gregório Nazianzeno, um dos padres capadócios, diz isso literalmente: “o cordeiro preso no mato prefigura Cristo, cuja natureza humana se prende à árvore da cruz para o sacrifício.” (Homilia sobre Abrahão). O cordeiro substitui Isaac como Cristo substitui a todos nós: inocente, silencioso, obediente até a morte.
A história de Abrahão é a primeira liturgia do sacrifício vicário – um mistério teológico que o sentimentalismo lacrador moderno não suporta. O mundo atual, dominado por psicologias de almofada e espiritualidade de autoajuda, não consegue mais lidar com a ideia de um Deus que exige sangue, preferem um Deus que consola, não um que redime. Um Deus que acolhe, não um que julga. Um Deus doméstico, jamais o Senhor do universo. O sacrifício foi trocado por sessões de acolhimento afetivo.
Mas a lógica da Páscoa é outra. A cruz não é um símbolo do sofrimento humano nem um manifesto contra o Império, é o altar do verdadeiro sacrifício. No Moriá, Deus pede a Abrahão o que ele tem de mais precioso: seu filho. No Calvário, Deus entrega ao homem o que Ele tem de mais precioso: Seu próprio Filho. Um Pai que não poupou o Filho, um Filho que se deixou imolar, um amor que se prova não por palavras, mas por sangue.
Cristo é o Cordeiro de Deus não apenas porque morreu, mas porque o fez em nosso lugar. O cordeiro de Abrahão morreu no lugar de Isaac, enquanto Cristo morre no lugar de todos os Isaacs da história: nós, filhos marcados pelo pecado, que merecíamos o sacrifício e recebemos a salvação. São João Batista aponta para Ele e diz: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jó 1,29). Ele não diz “o leão”, “o guerreiro”, “o profeta”. Diz cordeiro – isto é, a vítima.
E aqui está o centro: Cristo não foi um mártir da causa divina, mas o sacrifício que a torna possível. Ele não veio apenas nos ensinar a amar, mas a nos salvar pela oblação do amor – o êxodo, a saída de si mesmo para entrar na sacralidade do terreno do outro; fraternidade, solidariedade, ser-para-o-outro, amor incondicional. O cordeiro do Êxodo salvava da morte; o cordeiro de Abrahão poupava o filho; mas só o Cordeiro do Calvário tira o pecado do mundo. E o faz sendo morto – voluntariamente, amorosamente, silenciosamente.
A Páscoa cristã, portanto, não é sobre coelhos, ovos ou o belo e longo feriado ao qual nos acostumamos desfrutar, alheios ao seu significado: é sobre sangue, cruz, silêncio e redenção; sobre um cordeiro preso à árvore para que os filhos não fossem sacrificados. É sobre um Deus que não nos testou, mas nos amou até o fim.
Do monte Moriá ao monte Calvário, a linha é reta. A faca de Abrahão foi suspensa; a lança do soldado romano não. Porque o cordeiro verdadeiro estava pronto, desde sempre, para ser imolado.
Pense nisso, enquanto desfruta do belo e longo feriado.