Por Frederico José Gervasio Aburachid (*)
As comunidades quilombolas carregam uma herança histórica de resistência e combatividade. Há não muito tempo na história lutavam para escapar dos grilhões insensíveis da escravidão. Hoje, guardadas as gigantes diferenças, lutam para defender sua identidade e para serem ouvidas.
Essa história de luta tem lhes consagrado, mais que a liberdade formal, a realização de sua autonomia e a busca por sua emancipação do Estado. Dentre as conquistas, a Constituição da República de 1988 assegura-lhes seus direitos territoriais, impondo ao poder público o dever de titular seus territórios.
Segundo dados do Censo 2022 do IBGE, o Brasil possui aproximadamente 1,3 milhão de quilombolas distribuídos em cerca de 1.700 municípios. Apenas 4,3% dessa população reside em áreas já tituladas. Em Minas Gerais, estimam-se 980 localidades quilombolas. Esses números revelam uma realidade preocupante: a imensa maioria dos quilombolas ainda vive em situação de insegurança jurídica territorial.
Sobre o tema, cabe menção honrosa à Comunidade Quilombo Boa Vista, localizada no interior da Floresta Amazônica, em Oriximiná (PA). Foi o primeiro remanescente titulado no Brasil, em 1995, abrindo o caminho para os demais.
Além dos direitos territoriais e demais garantias previstas na Constituição de 1988, o Brasil ratificou a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, em 2004, que estabelece o direito à consulta livre (sem coerção), prévia (antes das decisões) e informada (com acesso qualificado e transparente aos dados) às comunidades tradicionais. A CLPI deve ser realizada quando medidas administrativas ou empreendimentos (públicos ou privados) possam afetar diretamente referidas comunidades.
Por meio de uma forma democrática de mediação ativa, com interlocutores tecnicamente preparados e imparciais, busca-se alcançar decisões consensadas, mitigar os impactos dos empreendimentos, respeitar os direitos em conflito, a organização social e a representação política de cada comunidade.
Em que pesem os dispositivos constitucionais e a ratificação da Convenção OIT 169, é certo que o arcabouço jurídico brasileiro ainda carece de melhor regulamentação sobre a matéria. Não é por outra razão que o Brasil tem visto diversos casos judiciais, envolvendo licenciamentos ambientais e possíveis ofensas aos direitos das comunidades tradicionais.
Em Santarém (PA), o terminal portuário da Embraps teve seu licenciamento suspenso, em 2019, por ausência de consulta às 12 comunidades quilombolas da região. Em Alcântara (MA), a expansão do Centro de Lançamento de Alcântara e projetos portuários continuam sendo fontes de conflito, resultando inclusive em denúncia à OIT pelas comunidades.
Em Minas Gerais, por sua vez, vem sendo noticiados novos casos, movidos principalmente pelo Ministério Público Federal (MPF), em relação ao licenciamento ambiental de atividades minerárias. Dentre os mais recentes, o MPF recomendou a suspensão, a revisão ou anulação de licenças ambientais concedidas para projetos de mineração de lítio nos municípios de Araçuaí (MG) e adjacentes.
Segundo a recomendação do MPF, comunidades quilombolas em Araçuaí, como Córrego do Narciso do Meio, Baú, Jirau e Malhada Preta, além de agrupamentos indígenas Pankararu/Pataxó, Aranã Índio, Aranã Caboclo e Canoeiros Maxakali estariam sendo afetadas sem que fosse respeitado o direito à consulta livre, prévia e informada.
Da mesma forma, a Justiça Federal em Minas Gerais suspendeu, por meio de decisão liminar (outubro/2025), a licença prévia para o início das obras do Rodoanel da Grande BH, atendendo a ação movida pela Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais. Mais uma vez, alegou-se que comunidades quilombolas não foram consultadas sobre a obra, violando a Convenção 169 da OIT. A liminar afeta um projeto de 100 quilômetros, envolvendo 11 municípios, com investimentos previstos de R$ 5 bilhões.
Diante de tal contexto de litigiosidade, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu recentemente consulta pública para receber manifestações sobre sua proposta de resolução para estabelecer parâmetros mínimos da Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) relativa aos povos indígenas, quilombolas e tradicionais. A proposta do CNJ destaca a relevância do impacto social, étnico, econômico, espiritual e cultural que a matéria representa para os povos e comunidades envolvidos, reforçando o compromisso do Poder Judiciário com a integridade e os direitos fundamentais desses grupos.
A toda evidência, muito antes da discussão sobre sua natureza jurídica, a consulta livre, prévia e informada caracteriza-se como uma incrível ferramenta de decisão estratégica para as partes envolvidas, permitindo melhor mensurar os custos do projeto, assim como legitimar a implantação e operação de empreendimentos por meio da formação de consensos.
Em outras palavras, promove-se a adesão das comunidades diretamente impactadas, tornando os empreendimentos (públicos e privados) socialmente legítimos e ambientalmente responsáveis, mas também se mitiga por meio de seus elementos diversos outros riscos e passivos.
Simples entender que a CLPI é capaz de reduzir custos e acidentes operacionais pela revisão de projetos construtivos, mensurar custos compensatórios e evitar danos a interesses difusos e coletivos de ordem até mesmo imaterial. Seus resultados traduzem a curto, médio e longo prazo a almejada segurança jurídica e mais atratividade aos investidores. É, sem qualquer margem para dúvida, um instrumento também afinado às premissas ESG (ambiental, social e governança), defendidas por diversos fundos de investimentos no mercado financeiro.
CLPI é instrumento estratégico em prol da coletividade
No cenário atual de investimentos, em que fundos ESG movimentam trilhões de dólares globalmente, a realização adequada da CLPI deixou de ser apenas conformidade legal para tornar-se diferencial competitivo. Empresas que demonstram respeito aos direitos de comunidades tradicionais atraem mais capital e constroem reputação de longo prazo.
A corroborar essas conclusões, importante citar o exemplo positivo do Linhão de Tucuruí, que atravessa terras indígenas Waimiri-Atroari nos estados do Amazonas e Roraima. O processo de consulta prévia foi realizado e o acordo homologado judicialmente em 2022. Indígenas participaram ativamente do monitoramento das obras, demonstrando que o diálogo qualificado permite conciliar desenvolvimento com respeito aos direitos territoriais. O estado de Roraima receberá finalmente uma energia menos onerosa e dependente do diesel e gás, o que é fundamental para a geração de emprego e renda.
Assim sendo, a consulta livre, prévia e informada transcende sua natureza de direito das comunidades tradicionais ou obrigação legal dos empreendimentos de impacto. Trata-se de um instrumento estratégico que serve a todos: às comunidades, que veem seus direitos respeitados e sua voz ouvida; aos empreendedores, que conquistam legitimidade social e previsibilidade jurídica; e à sociedade como um todo, que se beneficia de um desenvolvimento verdadeiramente sustentável.
O desafio que se impõe não é apenas regulamentar melhor o instituto ou ampliar sua aplicação. É mais profundo: exige-se mudança de paradigma. É preciso abandonar a lógica do confronto e dos passivos judiciais para abraçar a cultura do diálogo antecipado e da construção compartilhada de soluções.
A pergunta que fica é simples: ver a consulta prévia como um mero obstáculo ao progresso ou compreendê-la como o meio mais seguro, justo e inteligente para alcançá-lo? A resposta definirá não apenas o futuro das comunidades tradicionais, mas o modelo de país que desejamos para as próximas gerações.
























