Garantir o direito à saúde pode ser um desafio no Brasil. Nos últimos anos, cada vez mais cidadãos vêm recorrendo à justiça para conseguir acesso a medicamentos e tratamentos diversos. Segundo um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgado em 2019, houve um crescimento de 198% nos processos que versam sobre a saúde entre os anos 2009 e 2017 na primeira instância. O movimento se repete na segunda instância, com aumento de 85% no mesmo período.
De acordo com o advogado especialista em Direito da Saúde, Renato Assis, diretor do escritório que leva seu nome, dados como esses devem ser analisados com muito critério, pois podem indicar “a equivocada impressão de que os médicos são os responsáveis pelos crescentes números, sobretudo os cirurgiões plásticos e obstetras, que pertencem às especialidades médicas mais demandadas judicialmente”.
Para o especialista, “uma simples análise mais atenta e aprofundada é suficiente para que se tenha uma diferente constatação”. Basta observar, no mesmo relatório do CNJ citado anteriormente, que os três principais assuntos discutidos nos processos referentes à saúde, em primeira e segunda instância, tratam de plano de saúde (30,3%), seguro (21,2%) e saúde (11,8%), aqui entendida como as demandas sob a responsabilidade do Estado.
“Isso fica ainda mais evidente quando analisamos o teor das decisões em segunda instância mostrado pelo relatório. Os números apontam que 69,1% das demandas tratam do acesso a medicamentos; 63% versam sobre órteses, próteses e meios auxiliares; 55,6% sobre exames; 47,1% sobre procedimentos e 45,1% sobre leitos. Apenas 2,9% dessas decisões versam sobre erro médico. Isso mostra que a responsabilidade civil desses profissionais está longe de ser o principal motivo das ações”, destaca o especialista.
Dessa forma, para Assis, “percebe-se a falácia que é a responsabilização dos médicos pelos números da judicialização, pois os números não mentem: o SUS (ou o Estado) e a Saúde suplementar são os principais fomentadores de processos, desde que os indicadores passaram a ser analisados”, afirma.
SAÚDE SUPLEMENTAR
O advogado lembra que as demandas que correm junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme levantamento realizado em 2018, mostram que “do total de processos que versam sobre a área da saúde, 73% são contra os planos de saúde suplementar – sendo 35% sobre as negativas, 21% sobre os reajustes e 17% sobre manutenção dos planos”. Os demais temas, “entre eles, a responsabilidade civil dos médicos, somam apenas 27% do total de processos”, revela Assis.
Os motivos pelos quais os planos de saúde registram recordes no número de processos passa pelo viés econômico da atividade. “Eles têm absoluta ciência da posição consolidada do Poder Judiciário acerca das matérias discutidas. Contudo, seguem negando administrativamente o atendimento aos usuários por ser a estratégia mais economicamente viável, já que a minoria judicializa e obtém o acesso à saúde conforme legalmente devido”, esclarece o advogado.
PAPEL DA ANS
A Agência Nacional de Saúde (ANS) é o órgão que deveria fiscalizar a coibir essa atuação dos planos de saúde. No entanto, Assis aponta que “a regulação da ANS, além de falha, é propositalmente omissa. Embora os planos desatendam recorrentemente não só o Código de Defesa do Consumidor (CDC), mas também a própria Lei dos Planos de Saúde, a ANS ratifica tais práticas, mesmo a justiça as considerando abusivas”.
Dessa forma, o cidadão que necessita do acesso à saúde é quem sai prejudicado. Muitas vezes, “ao basear sua atuação ignorando quase que completamente as disposições claríssimas do CDC, do Código Civil e até mesmo da Constituição Federal de 1988, a ANS faz com que a justiça seja a real reguladora do setor – mas atendendo somente a quem judicializa”.
ACESSO À SAÚDE
Se nem para quem opta pela saúde suplementar o acesso é garantido, os cidadãos que dependem da saúde pública sofrem ainda mais com a precariedade do sistema. Um relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2020 analisou o quadro atual e os motivos pelos quais a judicialização para acesso à saúde só cresce.
Segundo o documento, “verifica-se a inobservância da legislação nacional que regula as questões sanitárias envolvendo o acesso às tecnologias em saúde no país. Também permanecem ignoradas as políticas públicas que estabelecem o que será ofertado (quais medicamentos, exames etc.), por que (quais as razões técnicas para a decisão tomada pela administração pública), como (em quais condições/de que forma o atendimento será feito) e de quem é a competência da provisão imediata do bem ou serviço (qual ente da Federação é o responsável, considerando os arranjos organizativos do SUS)”.
“Assim, podemos afirmar sem sombra de dúvidas que, além da saúde suplementar, temos na saúde pública mais um grande fomentador da judicialização”, ressalta Assis.
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS MÉDICOS
Dessa forma, ao analisar os números da judicialização da saúde no Brasil, fica claro que as ações contra os médicos e sua responsabilidade civil não são as grandes vilãs desse fenômeno. Apesar de ter havido um crescimento no número de processos relacionados a esses profissionais, “sobretudo durante a pandemia, podemos citar uma série de fatores para esse aumento. Felizmente, a maioria não está ligada a um eventual aumento dos casos de negligência, imprudência e imperícia, e sim a fatores externos à relação médico-paciente, mas que influenciam diretamente nesta”, esclarece o advogado.
Sendo assim, “o crescimento da judicialização revela de forma clara e cristalina o desatendimento do Estado de suas obrigações constitucionais e a maior consciência dos indivíduos quanto aos seus direitos, além da predisposição do Poder Judiciário em reconhecer este direito. Contudo, uma constatação inegável é que, frente aos números apresentados, a indicação dos médicos e sua responsabilidade civil como causa do aumento da judicialização é no mínimo, um grande equívoco”, conclui Assis.