*Por Ramon Melo Fontich
A palavra certeza nunca combinou com o dia a dia dos operadores do direito. Até mesmo o brocardo “só é dono quem registra”¹ não foge dessa invariável cruel da insegurança jurídica.
Embora pareça ser obsoleto, o tema Terras Devolutas nunca saiu da pauta dos tribunais. Apesar de sua conceituação ter se originado de uma lei promulgada em 1850, denominada Lei de Terras, não é raro encontrar processos que envolvam a temática.
Terras Devolutas é, em conceito clássico, aquilo que é “vazio, sem dono, desocupado”². São terras, portanto, que não se encontram na posse ou na propriedade de particular, nem do ente público.
Mas, antes de tudo, as terras no Brasil eram, a princípio, públicas, pertencentes à Coroa Portuguesa em razão do Tratado de Tordesilhas; e, após a Independência, foram transferidas ao patrimônio nacional.
A partir disso, a exploração privada da terra iniciou-se com o sistema de capitanias hereditárias e, posteriormente, implantou-se o sistema de sesmarias, dentre outras concessões – as quais conferiram a vários particulares a propriedade sobre imóveis que eram parte do patrimônio público.
Somado a isso, a maioria das terras do Brasil que hoje são ocupadas e de propriedade de particulares só foram registradas no início do século XX, época que existia o Registro Torrens (1890), que conferia propriedade ao seu beneficiário. Antes disso, na égide do Registro Paroquial ou Registro do Vigário (1854), o registro somente operava fins estatísticos, relacionados a posse.
A partir da Constituição de 1891, ocorreu a transferência das terras devolutas aos Estados Membros. Com isso, vislumbrando reaver para o ente público as terras tidas como devolutas e transferidas aos Estados membros por força da Constituição de 1891, os Estados passaram a se valer da ação discriminatória para delimitar e reaver as referidas terras.
Para tanto, os Estados passaram a utilizar uma tese para alegação da devolutividade das terras. Basicamente ela partia dos seguintes pressupostos:
I) As terras sem registro e, portanto, sem proprietário, seriam do Estado em decorrência da soberania emanada pelo Poder Público.
II) A propriedade é regida pelo princípio da continuidade da cadeia dominial – isto é, a cadeia de proprietários que se formou a cada transferência da propriedade, remontando-se desde o primeiro proprietário. Desse modo, havendo a quebra da cadeia dominial como, por exemplo por transferência da propriedade sem título que o legitime (venda a non domino), toda e qualquer transferência após essa quebra seria nula e, portanto, incapaz de transferir propriedade.
Assim, a tese sustenta que, se o Estado (União), recebeu todas as terras da Coroa Portuguesa a partir da independência, de modo que todas as terras brasileiras já foram de propriedade do Estado (União).
Por essa razão, as terras que não possuam o título originário de transferência (do Estado para o Particular), toda e qualquer transferência posterior foi a non domino, isto é, não tiveram o condão de transferir propriedade aos particulares, ocasionando a quebra da cadeia dominial.
Portanto, as terras que não foram transferidas do Estado aos Particulares por título legítimo são, afinal, devolutas e, consequentemente, terras do estado.
Nessa toada, a única saída que restaria ao particular seria comprovar que, ao tempo da entrada em vigor da Lei de Terras (1850), pelo princípio do tempus regit actum , o imóvel já era havido por particular por título legítimo e, portanto, estaria fora do conceito de terras devolutas, nos termos do art. 3º, §2º .
O resultado prático da tese é que, a maioria das terras havidas por particulares hoje são fruto de séculos de negociações informais entre particulares, que, com o passar dos anos formaram um emaranhado de negociações e transferências por “contratos de gaveta” – até mesmo porque o registro somente passou a conferir propriedade em 1890.
Por essas razões, dizer que as terras sem título originário (que transferiu a posse do Ente Público para o Privado) são do Estado, significa dizer que 90% das terras do Brasil são do Estado.
Mas, não obstante a severidade, injustiça e arrisco-me a dizer, ilegalidade da tese, mais ainda se assusta que ela foi admitida, ainda que minoritariamente (ainda bem!) por alguns Tribunais de Justiça.
A título de exemplo, há não muito tempo atrás, em 2019, por meio de pesquisa, verifiquei que houveram 3 (três) Acórdãos do TJMG que deram provimento às teses pretendidas pelo Estado de Minas Gerais.
Pelo outro lado, a referida tese tem contra-argumentos relevantes, que devem ser observados por uma análise sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, destacando-se, especialmente, a presunção de propriedade daquele que consta no registro atual; ônus probatório no processo civil e comportamento contraditório do Estado (nemo potest venire contra factum proprium).
(*)Ramon Melo Fontich é advogado com atuação voltada para o contencioso. Possuo experiência em atuação de processos judiciais estratégicos, especialmente nas áreas de direito civil, imobiliário, empresarial e administrativo
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¹ Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1 o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
² FERREIRA LOPES, Cícero. In Discriminatória, ed. Editôra Americana, 1940.
³ Em suma: os atos e negócios jurídicos devem ser analisados à época de sua realização, portanto, neste caso, em 1850 em razão da Lei de Terras (nº 601/1850).
4 “Art. 3º São terras devolutas: (…)
- 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura”.