Por Jorge Ferreira Filho (*)
Muitos já observaram que a história dos povos, independentemente do regime de governo (monarquia, aristocracia ou república) ou forma do Estado (unitário ou federativo) desenvolve-se em ciclos: fase anárquica; fase de regime forte; tentativa democrática. Normalmente, a experiência democrática desemboca em anarquia. Ao que parece, a natureza egocêntrica do homem alarga, excessivamente, no período democrático, a ideia de liberdade. Direitos individuais e coletivos entram em conflito, instaurando-se novamente a anarquia, reiniciando o ciclo, com o povo clamando por um governo autoritário.
Muito se sonhou. Muito se ensinou que a democracia, como regime político, é o governo do povo, pelo povo e para o povo, frase atribuída ao presidente Abraham Lincoln. Porém, indo ao nascedouro, a democracia criada na Grécia Antiga não comportava o entendimento de que o povo era constituído de pessoas iguais, pois a sociedade grega era escravagista. A ideia de democracia convivia bem com a ideia da desigualdade.
O processo civilizatório caminhou amalgamando duas latentes vontades: igualdade de oportunidades; garantia da liberdade (vedação à escravidão). Até o Século XIX, a forma predominante de governo era a monárquica. O discurso republicano e democrático mais aperfeiçoado surgiu com a Constituição Federal dos Estados Unidos da América, promulgada em 1787. A Carta materializou alguns princípios iluministas, todavia o texto não abolia a escravidão. Isso se deu, posteriormente, com a 13ª Emenda, em 1865.
No plano da sociologia política, fácil é observar que a ideia de democracia variou no tempo e, não raro é, em dado momento histórico, vê-la desenhada de forma diferente quando se muda de espaço. Uma notável transmutação descortinou-se com a disseminação da teoria marxista sobre a economia, o direito e a política. A teoria encantou.
O materialismo histórico de Marx, com seu manto de cientificidade, apontara como inevitável a chegada da classe proletária ao poder. A economia seria planejada pelo Partido, cujos membros seriam escolhidos livremente (democraticamente) pelo povo (a classe operária).
A democracia pensada pelo marxismo, todavia, discrepou-se das características das sociedades democráticas do Século XX. Os marxistas não conseguiam conviver bem com a heterogeneidade de doutrinas, com pensamentos divergentes da posição partidária e não se adequaram ao pluralismo. O resultado foi a supressão da liberdade de manifestação de pensamento e imposição de privações materiais. Implantaram-se ditaduras.
No campo da economia, venderam a ilusão de ser possível uma igualdade material plena, independentemente do mérito. Desprezaram os efeitos concretos do abstrato “mercado”. Não deu certo. Nenhuma economia planejada foi exitosa. Aliás, fato que foi previsto, no início do Século XX, pelo economista austríaco Hayek.
De outra banda, as sociedades democráticas modernas não conseguiram diminuir os problemas advindos da crescente e pujante desigualdade (material, no acesso ao mercado, na educação, na garantia à saúde etc.). Quem conseguiu ter bens materiais, boa educação, acesso às oportunidades e garantia de sua saúde se vê cada vez mais ameaçado, em relação à estabilidade de sua posição, por uma massa de humanos desiguais.
Os desiguais buscaram alternativas, algumas lícitas outras não, tais como o crime organizado para o tráfico de drogas, tráfico humano, expansão de jogos de azar, o terrorismo, a formação de milícias vendedoras de proteção e expansão dos assaltos urbanos. Um caos.
Agravando a situação de caos, a sociedade ocidental passou a vivenciar a perda da confiança nos parlamentares. Não se pode esquecer que o pilar do regime democrático, não é a harmonia dos poderes, mas o poder do sufrágio: o voto de uma pessoa sem capacidade de fazer juízo crítico vale tanto quanto o de uma pessoa instruída. A massa é manipulável e a eclosão das redes sociais abriu campo fértil para levar ao poder os demagogos, os hipócritas, os messias, os bravateiros e os encantadores de multidões com falsas interpretações de valores religiosos.
Daí Julien Benda dizer que nosso tempo é a era da organização intelectual dos ódios políticos. O lado político, assim como o time de futebol, passou a ser escolhido por igual forma: uma irracional paixão.
Não parou aí. Nossa era passou a ver o Poder Judiciário como um ídolo com os pés de barro. O direito deixou de ser as palavras enunciadas na Constituição, mas, sim, o resultado de uma lotérica vontade do intérprete. Trocando-se o intérprete, muda-se a leitura da Constituição. Como disseraCharles Evans Hughes (1862–1948): “We are under a Constitution, but the Constitution is what the judges say it is”. Dessa insegurança jurídica, resultou que a pessoa sem formação jurídica arvorou-se em chancelar os atos de juízes das Cortes Superiores, dizendo-os constitucionais ou inconstitucionais.
No espaço ideológico, tem-se, atualmente, uma esquerda perdida, pois “caiu na real” sobre a impossibilidade de sustentar economicamente o desenhado paraíso marxista. De outro lado, está uma direita confusa e desnorteada diante de tantos dragões quixotescos para enfrentar (proibição do aborto, vedação à liberdade de ensinar, liberdade para mentir, liberdade para conspirar, combate ao anacrônico comunismo, volta dos regimes militares, mitigação dos direitos humanos dos “bandidos”; legitimação da violência policial etc.)
Steven Levitsky, no seu livro “Como as democracias morrem” pontuou que os fundadores da república norte-americana desconfiavam do discernimento do povo. Hoje, as ideologias obnubilam o juízo crítico. Em faltando discernimento para entender as contradições, paradoxos e complexidade da sociedade moderna, a pessoa prefere se esconder atrás de uma opinião (posição irrefletida). Brota, então, o pensamento perigoso, no sentido de que um regime forte poderia acabar com a “bagunça” e mantendo a ordem (a desigualdade) vigorante.
A jornalista Anne Aplebaum, que foi colunista do jornal Washington Post, analisando a política moderna, disse que seu som é “estridente e dissonante”. Ponderou que a velocidade das mídias sociais ridiculariza a “monotonia contrastante da burrocracia e dos tribunais”. A rapidez com que são divulgadas notícias, muitas inclusive totalmente divergentes, desorienta. O debate moderno não cria consenso; busca torcidas. O homem comum reage, procurando “unidade e homogeneidade” no governo. O autoritarismo tem uma perspectiva enorme de ganhar força: na esquerda e na direita.