Por Amauri Meireles (*)
A petição inicial, protocolada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e amici curiae, que “questiona decretos estaduais sobre a política de segurança e pede o reconhecimento de graves violações de direitos humanos cometidas por policiais em favelas cariocas. Pede também que sejam implementadas medidas para reduzir a letalidade e garantir justiça às vítimas” deu origem à ADPF 635 (“A ADPF das favelas”).
O senhor ministro Edson Fachin, designado relator, em 05/06/20, determinou “a suspensão de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia (g.n.) do novo coronavírus, salvo em casos absolutamente excepcionais… Contudo, grande parte da mídia, erroneamente, divulgou que, a partir dali, as Polícias estavam proibidas de realizar operações nas comunidades.
Em 05/08/20, o tribunal pleno, por maioria, referendou a medida cautelar deferida.
Em 11/12/20, o ministro-relator despachou: “Decisão: Trata-se de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental em que se requer, em síntese, a elaboração de um plano para a redução da letalidade policial no Estado do Rio de Janeiro (g.n.)…
Em 16/04/21, o senhor ministro Fachin promoveu audiência pública e, em certo trecho, constante das transcrições da audiência – 684 páginas, disponível em https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/ADPF_635) – aquela autoridade afirmou: “O Tribunal, oportunamente e por certo, se manifestará sobre a compatibilidade desse estado de coisas com a Constituição da República brasileira. E é fácil perceber que, nesse estado de coisas, nada há nele de constitucional”, o que causou certa indignação em algumas autoridades fluminenses e cariocas. Seguiram-se mais idas e vindas.
O julgamento da “ADPF das Favelas” começou, em 05/02/25, com extenso parecer do relator – https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2025/02/635 – sendo suspenso, após ponderação do presidente do STF, senhor ministro Luís Roberto Barroso, para que, em razão da profundidade e da complexidade da questão, o colegiado buscasse a construção de consensos sobre os diversos pontos apresentados.
Retomado o julgamento, em 03/04/25, o senhor ministro Fachin reapresentou seu voto (modificado), o que trouxe alegria e alívio para um lado e frustração para outro. Ficou nominado como “Complemento ao Voto”, mas, de fato, foi um redirecionamento.
Finalmente, a decisão do plenário do STF, obviamente, foi seguir o voto do ministro-relator, sem as manifestações preliminares.
Enfim, apresentam-se o que poderiam ser as Considerações Finais:
– Conforme citado, “O objetivo desta Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é a promoção do cumprimento de decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos mediante elaboração de um plano para a redução da letalidade policial”. Pelo voto da Corte Suprema, infere-se que o Plano elaborado pelo governo do Rio de Janeiro foi aceito, ainda que algumas modificações devam ser feitas.
– Contudo, aspecto decisivo não foi considerado: questionou-se a letalidade policial, porém, não se considerou, não se enfatizou que isso ocorre porque o Estado (representado pelas forças policiais) é confrontado, quando da realização de operações, e, por isso, podem ocorrer indesejáveis e eventuais excessos. Esse confronto, na maioria das vezes, quase a totalidade, parte de organizações criminosas, que ocupam e dominam as comunidades, ou seja, em raríssimas ocasiões essa atitude parte da polícia.
É muito comum ouvir-se referências à baixíssima letalidade policial em muitos países, sejam pobres ou ricos. Esquecem-se de mencionar que, lá, a polícia, que representa, de fato, a Autoridade do Estado, é respeitada, não é afrontada e enfrentada.
– Sobre “Quais os reais efeitos dessa decisão do STF, relativa à ADPF das Favelas, no cotidiano das operações policiais, no respaldo jurídico dessas atividades e, principalmente, na proteção daquelas áreas?”, verifica-se ter ficado sepultado o equivocado entendimento de que haveria proibição de a Polícia “subir o morro”. Portanto, exceto em alguns procedimentos – em que houve ajustes, que passaram por uma sintonia fina – tudo volta ao status quo ante ADPF 635. Quanto à proteção daquelas áreas, objetivamente, houve um só efeito: fica cada vez mais claro que o problema, ainda, não foi adequadamente estruturado e, assim, temos recomendações para situações pontuais.
A tônica ficou restrita à abordagem da Causalidade, vértice – em que trabalham as polícias – para onde fluem as causas e refluem os efeitos das mazelas e das contradições sociais. Assim, as medidas sugeridas são periféricas, visto que se restringiram apenas – lamenta-se, a examinar procedimentos policiais, esquecendo-se que a criminalidade é menos um problema policial que uma grave e complexa vulnerabilidade sociopolítica provocada, no mínimo, por cidadania desfocada, ensejando desobediência às regras sociais e desrespeito aos valores sociais, e, também, por pouca atenção, na área da saúde, aos casos de insanidade e transtornos mentais.
Uma determinação – que, parece, foi colocada “para cumprir tabela” – é nuclear, ou seja, aborda questão essencial, fulcral e que não teve o necessário realce. Refiro-me a: “Reocupação territorial das áreas dominadas por organizações criminosas. Determinar a elaboração de um plano de reocupação territorial de áreas sob domínio de organizações criminosas pelo Estado do Rio de Janeiro e pelos municípios interessados, observando os princípios do urbanismo social e com o escopo de viabilizar a presença do Poder Público de forma permanente…”.
Tem-se a convicção de que tudo o mais que foi tratado é residual, vale dizer, é uma decorrência dessa absurda ocupação territorial, cujo fator gerador é uma letárgica Distopia Estatal – que não é recente – que onera as polícias.
Se, apenas, as operações policiais forem implementadas, certamente voltaremos às razões que motivaram a ADPF. A tática militar ensina que não basta conquistar o terreno, é necessário manter a posse. Operações policiais, pontualmente realizadas, não atingem esse objetivo e, ao contrário, provocam alvoroço e aumentam a sensação de insegurança nos moradores que lá permanecem, após retirada da polícia.
Enfim, não é a Força Pública Estadual (a Polícia Militar) que deve retomar áreas dominadas por organizações criminosas, nem é o governo. É, sim, o Estado, visto que a solução exige participação dos três níveis e das três esferas de Poder, em intervenções estruturais e funcionais a curto, médio e longo prazos. Começando pela requalificação do ambiente distópico, que é conveniente, apenas e tão somente, aos 5% de marginais que dominam as comunidades, que não devem ser confundidos com os 95% de marginalizados, ali residentes.