Recentemente escrevi pequeno resmungo nas redes sociais sobre este novo fenômeno, que se resumia no seguinte: “ para os que ainda não sabem, é um troço que inventaram para fazer as mulheres resolvidas, emancipadas e empoderadas brincarem de boneca até os 50 anos. Normalmente é fruto dos bons conselhos dos amigos maconheiros da universidade, da ausência paterna ou do cansaço em limpar cocô – ser ‘mãe de pet’ é muito trabalhoso e tornar-se ‘mãe de planta’ é só para quando se mudar para Lumiar e se tornar a orgulhosa mamãe de uns 35 pés de cannabis. Há que se repensar sobre a volta dos hospícios e da internação compulsória: é a Síndrome de Peter Pan versão feminina.
Resolvi eu mesmo responder tais questionamentos, em um pequeníssimo ensaio:
A Boneca e o Abismo
Vivemos tempos em que os sintomas de profunda demência coletiva se vestem de brinquedo, e o colapso espiritual da civilização aparece à venda em lojas de artesanato. O fenômeno dos chamados “bebês reborn” é, ao mesmo tempo, grotesco e revelador.
À primeira vista, trata-se apenas de bonecas hiper-realistas destinadas a colecionadores ou mulheres que, por um motivo ou outro, não puderam ou não quiseram ter filhos. Mas isso é apenas a concha do fenômeno. Quando observamos com olhos simbólicos, teológicos e filosóficos, o que se revela é uma radical recusa da realidade e da maturidade: uma regressão espiritual mascarada de afeto.
O rebornismo não é exclusividade brasileira. Surgiu nos Estados Unidos e Europa como arte e objeto de colecionismo, mas aqui foi elevado ao estatuto de culto popular: mulheres que tratam bonecas como filhos reais, que as levam ao pediatra, fazem enxoval, comemoram aniversário e batizado.
O que, à primeira vista, poderia parecer apenas brincadeira inofensiva ou um consolo emocional, revela-se como um sintoma de algo mais profundo: a rejeição simbólica do tempo, da morte, da responsabilidade e do sacrifício.
Estamos diante de um novo tipo de distúrbio psíquicossocial, que poderíamos chamar de “maternidade estética”. Trata-se de uma maternidade sem carne, sem sangue, sem leite, sem vigília noturna, sem renúncia. Um simulacro de entrega, onde a mulher desempenha o papel materno sem precisar atravessar os horrores e as belezas da criação de uma vida real. É como desejar o altar, mas sem Deus; a missa, mas sem o sacrifício – a versão feminina do garoto que pega o carro do pai: quer “parecer”, não “ser”.
A maternidade, em sua essência simbólica, é um ritual de morte e renascimento. A mulher que se torna mãe precisa morrer em si para renascer no outro. O rebornismo, por sua vez, oferece uma fuga: é a maternidade sem cruz, sem ressurreição. Uma maternidade gnosticamente depurada da realidade corpórea, onde o corpo do filho é um boneco de vinil e a alma da mulher permanece intocada, estagnada, infantilizada e sem nenhuma obrigação, responsabilidade ou seios caídos e cicatrizes da cesariana.
Não se trata apenas de um desvio patológico individual, mas de um sintoma civilizatório. Numa época que glorifica a juventude eterna, que foge da dor e da morte como se fossem ofensas pessoais, não é de se estranhar que se tente suprimir também o peso existencial da maternidade.
O bebê reborn é a criação perfeita da mulher “empoderada” que se recusa a crescer: quer brincar de boneca, mas com verniz adulto; quer o vínculo, mas não o risco; quer o afeto, mas não o comprometimento.
Essa é, em essência, a versão feminina da síndrome de Peter Pan que citei acima, mas com um agravante: enquanto o homem que se recusa a amadurecer costuma fugir do casamento, da paternidade e da responsabilidade, a mulher rebornista tenta simular essas mesmas coisas, como quem encena uma peça para si mesma. Trata-se de uma farsa emocional, uma autoficção afetiva onde o vazio da alma é preenchido com vinil pintado a mão.
A civilização que substitui filhos por bonecos está espiritualmente esgotada. E mais: está às portas da demência simbólica. Porque onde não há mais distinção entre realidade e encenação, entre sacrifício e performance, entre sangue e tinta, não há mais mundo. Há apenas uma bolha narcisista onde cada um representa a si mesmo, para si mesmo, em um teatro sem público e sem Deus.
Voltar a brincar de boneca aos cinquenta não é libertador. É o último sintoma de uma alma que se recusa a atravessar a dor da maturidade. Não por falta de coragem, mas por excesso de vaidade.
E onde não há coragem nem humildade, resta apenas o riso melancólico do palhaço que brinca sozinho num picadeiro vazio.
Que venha o hospício ou que venha o exorcismo. Mas que não digam que isso é normal ou, em breve, estas mesmas “mamães reborn” estarão fazendo “comidinhas” em panelinhas, forninhos e fogõezinhos de brinquedo, junto com as amiguinhas da creche.
Mas há mais um ponto.
Mães e Pais de Plantas e Pets
Ao somarmos os “pais de pet” e “mães de planta” ao fenômeno do bebê reborn , temos o verdadeiro Tríptico da Infantilização Moderna – a Santíssima Trindade da recusa ao real. Três maneiras distintas de escapar da gravidade simbólica da vida adulta, de abolir o drama da existência e trocar o suor da carne pelo verniz do afeto controlado.
O rebornismo não está só. Ele é apenas o vértice mais teatral de uma tendência mais ampla: a substituição dos vínculos reais por vínculos simbólicos estéreis – seguros, higienizados, sem transcendência. O mesmo impulso que leva uma mulher a carregar um boneco de vinil como se fosse um bebê, leva também à criação do “filhinho de quatro patas” e da “planta que é quase uma filha”.
O fenômeno dos pais de pet é a transposição afetiva da paternidade para o campo da simulação emocional. É o desejo de afeto unilateral, de controle absoluto sobre o outro, sem o risco da alteridade real. Um cachorro – ou gato – não contradiz, não decepciona, não exige sacrifício de alma, apenas de rotina. Ele preenche o vazio, mas não desafia a alma. É uma paternidade sem legado, sem linhagem, sem história.
Já o cultivo de plantas como substituto simbólico da maternidade ou paternidade é ainda mais gélido – é a redução da entrega vital a um ato de estética botânica. Ser “mãe de planta” é um estágio inferior da alienação: a vida vegetal, silenciosa, obediente, torna-se espelho da vontade narcísica. A planta não chora, não exige, não rompe com nada. Ela apenas cresce – ou morre – conforme os caprichos de sua dona. É a maternidade que se deseja pura contemplação, sem drama, sem eros, sem cruz.
Ora, o que une esses três fenômenos – bonecas, bichos e vasos – é o horror à alteridade incontrolável. O filho verdadeiro, o esposo, o real, são abismos onde a alma amadurece ou se quebra. Já o pet, a planta e o boneco são espelhos passivos: só devolvem aquilo que projetamos neles. São os “relacionamentos” perfeitos para a geração do narcisismo estrutural, quase genético de hoje.
Essas formas de simulação afetiva são sintomas de um Ocidente que perdeu a coragem de ser. A coragem de parir, de sofrer, de perder o sono por um filho, de ver o outro como mistério e não como projeção. Elas não representam amor, mas medo. Medo da morte, medo do outro, medo de amar até o fim.
E quando o amor é substituído por um simulacro, o que resta é o deserto do sentido. Um deserto florido com lavanda sintética e cães com nome de bebê. Mas ainda assim, deserto.
Não há esperança de cura se nos deparamos, hoje, com adolescentes que preferem namoradas virtuais, criadas pela Inteligência Artificial, do que o corpo quente, beijos molhados – e brigas, cobranças, ciúmes – da verdadeira, de carne e osso.
A humanidade foge do real, e da própria existência de outros humanos.
Nostradamus estava certo: o mundo acabou.