*Francisco de Castro (Jeremias) – Jornalista
A infância é um pontinho quase imperceptível no horizonte da minha memória. Mas, às vezes que consigo me aproximar, deparo-me com uma profusão de acontecimentos que embaça a vidraça do presente e me abre caminhos já percorridos. Aí, é só caminhar!
Estou na noite de Natal de 1958. Minha mãe Zizi e seus rebentos, eu Vicente e o José Geraldo, morávamos em Viçosa, para onde viemos no mês de novembro do ano anterior, logo após a morte do nosso pai. O Joaquim, o mais velho e hoje não mais entre nós, não estava. Um padrinho dele o pegou para “acabar de criar”. Passado, agora, um ano e pouco, já estávamos livres do relento. Uma pequena casa, cedida de favor pelo professor Arlindo de Paula Gonçalves, ao lado da Usina Santa Rita, no antigo Pau de Paina (Bairro Nova Era), servia-nos de abrigo.
Em frente à casa, erguia-se majestosa a chaminé que lá existe até hoje. Pelo tamanho dela, o leitor já pode imaginar a imensidão da casa de meus antigos sonhos – minha filha Giovanna, que ainda não tem seis anos de idade, adora contemplar a chaminé. Acho que ela consegue enxergar alguns de meus sonhos que ainda perambulam por lá. Na chaminé, da base ao cume, havia uma espécie de escada feita de pedaços de vergalhão, onde eu fazia minhas estripulias quando mamãe não estava em casa. Subia, subia, subia. E, de lá das alturas, sentia-me grande, porque à distância, o que eu enxergava eram apenas miniaturas de casas… e de gentes.
Um pouco antes daquela noite de Natal, no primeiro Domingo do Advento, mamãe trouxe-nos à Matriz para uma Missa que só ela assistiu. Ao chegar à Praça – esta mesma Silviano Brandão, só que mais praça – deparei-me com algumas vitrines que expunham brinquedos. Coisas mais lindas que o Papai Noel daria para as crianças escolhidas. Eu era meio arteiro e não me incluía entre as “escolhidas”. Durante a Missa, só as imagens dos brinquedos povoavam-me a mente. Não havia lugar para palavras. Nem para as que minha mãe proferia com tanta devoção. Terminada a obrigação cristã, dei mais uma olhada nas vitrines, puxado pelas mãos que me arrastavam em passos apressados.
Amanheci a segunda-feira perambulando pelos arredores da usina a procura de matéria prima para fabricar meus brinquedos: um caco de cuia aqui, um chuchu acolá, uma vara de taquara e – um tesouro – um carretel de linha vazio. Voltei com as mãos cheias. Barro. Isso não era problema! Aos poucos tudo foi tomando forma: um carro de boi, o boiadeiro, o fazendeiro, a dona da casa, os meninos, os bois, cavalos, enfim, a “fazenda” inteira. Pronta a obra, eu ligava a tomada da imaginação e tudo ganhava movimento. As crianças “escolhidas” do Papai Noel, com certeza, não conheciam esta técnica. Os brinquedos já vinham prontos. Coisa mais sem graça!
Agora é noite de Natal mesmo. Aquela de 1958. Mamãe chegou a casa com uma sacola de pães velhos e um vidro com um líquido amarelado, que depois descobri tratar-se de óleo de sardinhas, que sobrou dos peixes que a sua patroa usara para a macarronada da Ceia da família dela, da patroa. Naquela data, com um pouco de dinheiro que recebera, ela, a mamãe, comprou também dois pacotinhos de suco em pó (ki-suco), nos sabores de guaraná e limão. Em casa, colocou o óleo numa latinha de goiabada vazia que servia de prato e preparou, de uma só, vez os dois pacotes de refrescos. Depositou tudo em cima da mesa – uma caixa de tomates também vazia – que vi farta como em pouquíssimas ocasiões. Também era Natal. Sentamos todos. Rezamos como de costume, e começamos a saborear aquele verdadeiro manjar dos deuses. Para quem visse de fora, a cena repetia assim um quadro da Santa Ceia. Só que com menos gentes e sem ninguém para trair e ser traído.
Depois, muitas vezes, ouvi comentários sobre cardápios da data natalina. Os mais variados possíveis. Quando bate o espírito saudosista em alguns, falam de como eram apetitosos as variedades de doces e quitutes consumidos na infância. Sempre fiquei calado nessas ocasiões. Ocorre, porém, que, em certa feita, alguém me questionou sobre a primeira lembrança de uma ceia de natal.
Respondi com muita humildade: a primeira ceia de Natal que me lembro, teve massa passada ao molho de frutos do mar, regada a coquetel de frutas tropicais.
Pura verdade!