Por Cleuzany Lott (*)
Se um condômino não pode hospedar uma pessoa para obter renda, por que o outro morador pode usar o imóvel para trabalhar e ganhar dinheiro?
A dúvida se tornou relevante durante a pandemia e ganhou mais força com a publicação da Medida Provisória 1.108, aguardada pelo segmento trabalhista.
A MP regulamenta o home office e certamente vai incentivar mais pessoas a ficarem em casa, especialmente os trabalhadores com deficiência ou com filhos de até quatro anos completos, que terão prioridade para as vagas em teletrabalho.
Nem todas as legislações foram readequadas de acordo com as necessidades em ascensão, por isso é necessário lançar o olhar para dispositivos que não conflitam com as leis existentes, como as que regem os condomínios.
A natureza do condomínio está descrita no contrato de compra e venda e na convenção, ambos registrados em cartório.
Os residenciais trazem a cláusula expressa e inequívoca do uso exclusivamente para fins de moradia. Assim, qualquer atividade comercial é proibida.
Porém, os avanços tecnológicos e a pandemia aceleraram movimentos que já aconteciam, construindo uma nova realidade, à qual todos precisamos nos adequar.
Como ordenamento jurídico ainda não traz a resposta pronta para as dúvidas atuais, a regulamentação interna, pactuada entre os coproprietários, com o auxílio de um profissional, é importante para a prática do trabalho em casa e para diminuir o risco de conflitos.
Entretanto, partindo do pressuposto de que essa não é a realidade da maioria, algumas considerações são necessárias, tanto para os gestores quanto para quem pretende adotar a nova modalidade.
O Código Civil é a principal norma a ser seguida. O artigo 1.336 estabelece que as unidades não devem ser utilizadas de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.
Portanto, trabalhar em casa não significa transformar a moradia em local só de trabalho: o uso domiciliar deve predominar e as regras do condomínio precisam ser cumpridas. Logo, nem todas as atividades poderão ser exercidas.
Nesse contexto, usar a unidade para trabalhar com produtos ou serviços que façam barulho, exalem odores desagradáveis, perigosos e ou que coloquem em risco a segurança dos moradores, é uma situação pouco provável de ser aceita, segundo o entendimento do artigo citado.
Por exemplo, um professor de instrumentos musicais poderá ter problemas, pois, independentemente do horário, ele poderá perturbar o sossego dos outros, a menos que a acústica seja tratada, evitando a propagação do som.
Quem comercializa produtos – definição de atividade comercial – também poderá sofrer restrições, devido à natureza da atividade que, em tese, favorece o fluxo de pessoas estranhas circulando no condomínio, colocando a segurança dos moradores em risco.
O mesmo não ocorrerá com quem exerce atividades intelectuais, mais discretas e silenciosas, dentre outras que preservam os bons costumes e não alteram a rotina do condomínio.
Vale reforçar que as referências são subjetivas, usadas tão somente para ilustrar o artigo. Outrossim, não distanciam da realidade que requer a consideração de quem está à frente dos condomínios, até porque há outras circunstâncias a serem consideradas, como o uso das áreas comuns para reuniões de trabalho e a possibilidade do aumento das despesas coletivas decorrentes do teletrabalho.
Para finalizar, a locação de imóveis em condomínio, tanto pelas plataformas digitais quanto por contratos de curto período, configura hospedagem, conforme esclarece o consultor hoteleiro e asset manager Maarten Van Sluys. Considerado o maior especialista sobre o tema no Brasil, ele afirma que o simples fato de oferecer quartos ou apartamentos para locação diária caracteriza a hospedagem, mesmo que os proprietários não estejam registrados na Empresa Brasileira de Turismo (Embratur).
Portanto, além de infringir a convenção, o condômino está afrontando o artigo 3° do Decreto 84.910/80, que regulamenta os meios de hospedagem, que determina que “somente poderão explorar ou administrar Meios de Hospedagem de Turismo, Restaurantes de Turismo e Acampamentos Turísticos, no País, empresas ou entidades registradas na Empresa Brasileira de Turismo – Embratur. Parágrafo único – A abertura de filiais é igualmente condicionada a registro na Embratur”.
(*) Cleuzany Lott é advogada, especialista em direito condominial, síndica profissional, jornalista, publicitária e diretora da Associação de Síndicos, Síndicos Profissionais e Afins do Leste de Minas Gerais (ASALM).