Por Walter Biancardine (*)
1 – Se a Justiça está acima de todos os homens e instituições, quem a comanda certamente será algo como um “vice-deus” – sim, porque alguém tem a palavra final na Justiça, e não é um grupo. A Justiça jamais poderá ser absoluta, e nossos destinos sempre estarão sujeitos às índoles alheias, tal como hoje.
2 – Todo poder sempre é exercido por um só. Disfarçá-lo, diluí-lo como na democracia ou através de um “consenso” é apenas abrigar o verdadeiro poderoso das consequências de seus atos. Se está nas mãos de um só, que saibamos quem é, para que seja punido ou premiado, conforme seus feitos.
Com base em tais premissas, as quais creio serem por demais sonegadas, escondidas e abafadas para todos, analisemos:
O véu da Justiça, o fardo do Poder, destino e autoridade
A estrutura da sociedade humana repousa sobre alicerces cimentados não só pela razão, mas também, pela tradição, instinto humano e necessidade de ordem. A partir da breve introdução que apresentei acima, duas verdades fundamentais emergem: a impossibilidade de uma Justiça absoluta e a inevitável centralização do poder. Essas constatações, ainda que incômodas para alguns idealistas ou para os eternos oportunistas, são a essência do realismo político e de uma prudência elementar.
A Justiça: mito ou instrumento?
A primeira proposição desafia um dos dogmas modernos: a crença em uma Justiça inatingível, impessoal e transcendente – os “Deuses do Olimpo”, como hoje vemos. A ilusão de que há uma entidade jurídica pura, acima dos homens, de suas misérias e paixões, é um delírio igualitário, um sonho utópico que não resiste à mínima análise histórica. O direito sempre foi, é e sempre será, uma manifestação da vontade de quem o exerce. E essa vontade, por sua vez, não é divina nem infalível, mas humana – demasiadamente humana, diria Nietzsche – sujeita a paixões, preconceitos e conveniências.
Aqueles que depositam sua fé em uma Justiça absoluta fazem-no por ignorância, desespero ou ingenuidade, esquecendo-se de que toda decisão judicial reflete, em última instância, a índole de quem julga – tal como nos “paredões” de um reality show, sabemos mais sobre quem assiste do que sobre quem participa do programa, tendo suas escolhas em vista.
O código pode ser escrito com todas as tintas da imparcialidade, mas quem o aplica são homens, e os homens não são deuses – longe disso. A Justiça, portanto, não está acima da sociedade; está dentro dela, moldada por sua cultura, seus valores e – principalmente, como nos dias atuais – seus interesses.
Isso nos leva a um dilema central: se a Justiça não pode ser absoluta, tampouco pode ser neutra. Então, a quem serve? A resposta me parece clara: deveria servir à preservação da ordem e dos valores que sustentam a civilização, embora não seja o que hoje vemos. Se não há um critério transcendental para a Justiça (e o Estado é laico), resta-nos um critério histórico e moral: aquilo que garantiu a estabilidade ao longo do tempo deveria ser protegido, e aquilo que ameaça dissolver essa estabilidade deveria ser contido e, preferencialmente, banido.
O Poder: ilusão democrática e o regresso ao realismo
A segunda proposição que apresentei desmonta outra ficção política moderna: a de que o poder pode ser verdadeiramente disperso. A democracia, o consenso e as supostas decisões coletivas não são mais do que disfarces para ocultar aquele que realmente governa. O poder, por sua própria natureza, é indivisível; pode ser ocultado, pode ser negociado, mas jamais desaparece ou se fraciona.
Ao longo da história, todas as civilizações compreenderam essa verdade: o rei, o imperador, o cônsul, o presidente — sempre há um, e um só. Mesmo sob sistemas que se apresentam como descentralizados, há um núcleo de comando, que obviamente tem um líder e conduz uma vontade decisiva, a impor rumos à sociedade. O perigo da ilusão democrática é que ela camufla essa liderança sob a névoa numérica – um “colegiado”, por exemplo – ou da burocracia e das instituições, tornando o governante invisível e, portanto, impune.
Melhor, então, que o poder seja reconhecido e personificado. Quando se sabe quem manda, pode-se responsabilizá-lo por suas ações, julgá-lo conforme seus méritos e, se necessário, removê-lo. O anonimato do comando — seja através de conselhos, comitês ou parlamentos — apenas permite que decisões desastrosas sejam tomadas sem que ninguém responda por elas.
Não devemos temer a autoridade. Pelo contrário, entendamos que ela é necessária e saudável, se e quando bem exercida. O verdadeiro problema não está no poder concentrado, mas no poder mascarado, livre para erros e abusos, sem maiores consequências.
Entre o realismo e a ilusão
O que minha pequena introdução acima nos apresenta é uma visão realista da natureza humana e da organização social. A Justiça não é uma força etérea, pairando sobre os homens; ela é uma ferramenta do poder. E o poder é verbo, não é uma entidade difusa; ele sempre pertence a alguém. Reconhecer essas verdades é o primeiro passo para escapar das armadilhas ideológicas do mundo moderno, que prometem igualdade onde há hierarquia e liberdade onde há domínio.
Não nos iludamos com promessas de utopias jurídicas ou democracias perfeitas. Sabemos que a sociedade é feita de homens, e homens erram, manipulam, buscam vantagens. Portanto, melhor do que confiar em sistemas abstratos é reconhecer o jogo do poder como ele é e agir com prudência, sem ilusões.
Se há um soberano, que tenha rosto. Se há Justiça, que seja aplicada com consciência da sua limitação.
E se há um destino, que este não seja entregue ao acaso, mas sim àqueles que têm a coragem de carregá-lo nos ombros.