Por Amauri Meireles (*)
Na obra de Miguel de Cervantes, escrita em 1605, o protagonista Don Quixote empreende uma cruzada, pressupondo que estaria lutando pela honra, liberdade, justiça, amor. Porém as formas de fazê-lo – lutar contra moinhos de vento, pensando que eram gigantes, por exemplo – evidenciaram sua sandice.
Assim é que, em seu périplo, ele entra em confronto com vários personagens, em várias situações, para defender a honra de Dulcineia – o seu amor platônico – e, assim, provar seu afeto por ela. Sua atordoada obstinação não lhe permitia ouvir e seguir conselhos, o que o levou a acumular revezes em sua ilusória caminhada.
Situação semelhante observa-se hoje, quando o Ministro da Justiça cria uma Dulcineia moderna, ao elaborar uma PEC para, pretensa e pretensiosamente, conter a inquietante, angustiante e preocupante elevação da espiral da criminalidade. Ora, esse fato social, complexo, multiministerial, multissetorial, multidisciplinar não pode ser resolvido com “uma canetada” daquela autoridade. A razão é flagrante: o problema não é, apenas, de sua pasta, nem do governo, é do Estado brasileiro, porque tem causas, tem efeitos e, no meio, a causalidade (vértice, para onde fluem causas e refluem efeitos das mazelas e contradições sociais, em que trabalham as polícias).
A proposta apresentada trata, pontualmente, de alguns paliativos que podem trazer, talvez, melhorias na causalidade, na atividade policial, de pouca repercussão no conjunto, visto que não atacam os fatores geradores. É como se, em um cômodo empoçado de água de chuva, alguém se preocupar, apenas, em melhorar a qualidade do rodo, em lugar de se ocupar, com prioridade, em restringir, reduzir ou, até mesmo, eliminar as goteiras. Além disso, o aperfeiçoamento do tal rodo, no caso, tem um custo muito alto. Minimamente: redução da autonomia administrativa de governadores e prefeitos, submissão obrigatória a certos preceitos para recebimento de repasses e, mais ainda, por gerar a expectativa na população de que essa modesta, inadequada e insuficiente PEC, traz efetividade na “tentativa de organizar o jogo” no enfrentamento à criminalidade, conforme falou o próprio Ministro.
Com o envio da PEC ao Congresso, que reúne políticos, semelhantes ao Cavaleiro da Lua Branca (que, estima-se, devem ser realistas, experientes, pragmáticos), pode ser que esteja começando o embate final. Dele, acredita-se, deve refulgir cristalino “a importância de acreditar que a realidade é mais do que os sentidos percebem”.
Versando, especificamente, sobre o conteúdo dessa “PEC da Segurança”, verifica-se que, no geral, é um amontoado de truísmos, de matéria para leis ordinárias e de pouca ressonância, abrangência que justifique constar em nossa Lei Magna.
Em paralelo, é oportuno lembrar que, no espectro da proteção da sociedade, da defesa da sociedade, no ambiente de insegurança em que a vida é vivida há expressões que são correntemente utilizadas, mas têm interpretações extremamente variadas, diversificadas, conduzindo a entendimentos heterogêneos. Enfim, em matéria de conceituação, há noção de muita coisa e convicção de muito pouco. Daí, questionar-se, a seguir, qual o sentido que o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) pretendeu dar a alguns enunciados nessa PEC.
Assim:
XXVII – estabelecer a política e o plano nacional de segurança pública e defesa social, que compreenderá o sistema penitenciário…
– O que se deve entender por segurança pública? É combater o crime? É fazer a contenção da criminalidade? É controlar vulnerabilidades? É mitigar ameaças? É, no geral, proteger a sociedade? É proteger o ecossistema social? É uma atividade? É um ambiente que decorre de mecanismos de proteção? Segurança é uma atividade?
– O que é defesa social? É proteger a sociedade contra o crime? Ou contra qualquer vulnerabilidade ou qualquer ameaça? É proteger nosso ecossistema social?
– O que é sistema penitenciário? É o também conhecido por sistema carcerário, sistema prisional, sistema penal, por Polícia Penal, por sistema de execução penal administrativa? São as denominadas Secretarias de Administração Penitenciária? Quais órgãos compõem esse sistema?Está fora de Segurança Pública e de Defesa Social?
– Segurança pública abrange a Defesa Social, ou esta integra aquela?Ou são cenários distintos?
XXVIII – coordenar o sistema único de segurança pública e defesa social e o sistema penitenciário, por meio de estratégias que assegurem a integração, a cooperação e a interoperabilidade dos órgãos que o compõem…
– A falta de coordenação, nos três níveis, tem sido, de fato, o calcanhar de Aquiles no trabalho das instituições que realizam a atividade policial. Lembre-se, porém, que coordenar referido sistema é diferente de comandá-lo, como, subliminarmente o MJSP está pretendendo.
– O SUSP já está criado através da Lei Nº 13.675, de 11 de junho de 2018. Por que constitucionalizá-lo? As prescrições ali contidas foram operacionalizadas? Têm dado resultados? O Sistema Nacional de Acompanhamento e Avaliação das Políticas de Segurança Pública e Defesa Social (Sinaped), o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas (Sinesp) e o Sievap, Sistema Integrado de Educação e Valorização Profissional -, órgãos instituídos no SUSP, estão ativados e ativos?
– Seria oportuno examinar a conveniência de trocar “sistema único de segurança pública e defesa social e o sistema penitenciário” – que ninguém sabe o que é isso – por “sistemas policiais” – federal, estadual, municipal, onde couber?
– Convém examinar a troca do verbo “integrar” (fundir, unir, juntar) – que tem sido flexionado de forma equivocada – por “interagir”(dialogar, entrosar, compartilhar);
XXII – competência da polícia federal, da polícia viária federal eda polícia penal federal;
– As atividades policiais são desenvolvidas por instituições com denominações específicas, que integram o gênero-polícia, em cada um dos três níveis de governo. Essas instituições podem ter a denominação (substantivo próprio) que quiserem, visto que, na CF/88, Art.144, são citadas em letras minúsculas (substantivo comum), conquanto não se sobreponham ao gênero-Polícia, nos citados níveis: Polícia Federal, Polícia Estadual, Polícia Municipal. Portanto, a citação “competência da polícia federal” está inadequada, visto que se refere a uma das polícias federais, ou seja, à “polícia judiciária federal”;
– Quanto à transformação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Polícia Viária Federal, entende-se como um retrocesso. A partir do momento que a PRF foi valorizada, estimulada, apoiada passou a acumular sucessivos êxitos no cumprimento da missão. Agora, na contramão da moderna administração, que estimula criação de especialidades e, dentro dessas, as especificidades (vide a Medicina, a Engenharia e outras atividades), a União quer juntar a PRF, a polícia hidroviária e a polícia ferroviária, em lugar de optar pelo mesmo procedimento – modernização, qualificação, valorização – adotado com a PRF? Certamente, há inúmeras situações que irão exigir uma reengenharia vigorosa. Por exemplo, temos um Ministério de Portos e Aeroportos (MPOR), que controla essas instalações, respectivamente, através da relegada “Guarda Portuária” (que faz polícia ostensiva), dos “Guarda e Segurança (GSGS)” da Aeronáutica, dos “Agentes de Proteção da Aviação Civil”, e dos “Fiscais da ANAC”. A Guarda Portuária vai para o Ministério da Justiça e Segurança Pública e a proteção de aeroportos vai permanecer com o MPOR? Ou fazendo somente a segurança física de instalações vitais, ambos permanecerão no MPOR? A Agência Nacional de Transportes Aquaviários, vinculada ao Ministério da Infraestrutura, lá permanecerá ou vai para o MJSP (na PRF?) ou será extinta? A mesma pergunta vale para a ANAC que, também, se vincula ao MPOR. Ainda, de passagem, a “Defesa Civil” (atividade policial desenvolvida em relação a desastres) permanecerá no Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional?
Convém lembrar que:
– há pouco tempo, a Polícia Penal foi finalmente reconhecida constitucionalmente (porque ela sempre existiu, desde que Cabral aqui chegou, trazendo degredados escoltados);
– a polícia ferroviária e as guardas municipais também já estão no Art. 144 da CF/88. Contudo, a Força Nacional de Segurança Pública sequer foi lembrada nessa PEC, embora esteja operando com resultados amplamente satisfatórios.
Então, a pergunta: por que não instrumentalizar esses órgãos (individualmente e não por junção), visto que já desempenham atividades policiais peculiares, começando pela constitucionalização dos que ainda não o foram, seguida de aparelhamento e qualificação de todos eles, conforme procedimento exitoso adotado com a PRF? É absolutamente necessário entender-se que a “simetria” entre forças policiais federais e estaduais, que o senhor Ministro defende, é melhor alcançada na relação Polícia Militar / Força Nacional do que em Polícia Militar / Polícia Viária Federal.
A PEC sugere modificações e acréscimos na CF/88:
– No Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre…, propõe incluir o inciso XXXI – normas gerais de segurança pública, defesa social e sistema penitenciário. Privativamente? E os estados e os municípios que são realidades culturais distintas, aceitarão perder autonomia administrativa nessa área?
– No Art. 23 – É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”- propõe incluir o inciso XIII, “prover os meios necessários à manutenção da segurança pública e da defesa social”. A contrapartida será cobrada mais à frente.
– No Art. 144, a alteração, no inciso II, de “polícia rodoviária federal” para “polícia viária federal”. Como falamos, um retrocesso, essa aglutinação.
– No Art. 144, a inclusão do inciso VII “- guardas municipais”, acertadamente, pois essa instituição realiza atividade policial nos municípios.
É possível que surja a indagação: por que outros órgãos, instituições, entidades, que realizam atividade policial, não estão no Art. 144? Exemplo: Polícia Aeroviária, Polícia do Senado, Polícia da Câmara, Polícia Judicial, Polícia das Assembleias Legislativas, Fiscais da Receita Federal e do Trabalho, Fiscais ambientais da Funai, Ibama, os Agentes de Trânsito e demais Polícias denominadas “Administrativas”.
– É proposta a alteração no §1º, inciso I, de:
“§ 1º A Polícia Federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; para:
I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União, inclusive o meio ambiente, ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, como aquelas cometidas por organizações criminosas e milícias privadas, segundo se dispuser em lei;
Com o crescimento das organizações criminosas (Orcrim), que ampliaram seu leque de atividades – não mais restrito a tráfico de armas e drogas – com destaque para os “crimes cibernéticos”, o trabalho de inteligência, de investigação, de polícia judiciária da União, realizado com exclusividade pela denominada “polícia federal”, será o mais exigido, prioritariamente.
Assim, a institucionalização de uma Força Pública Federal irá liberar a polícia judiciária federal (denominada polícia federal) de realizar atividades de Polícia Ostensiva, que, em razão dessa falta,vem sendo obrigada a fazê-lo.
– É proposta alteração no § 2º de:
- 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais para;
- 2º A polícia viária federal, órgão permanente, organizado emantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na formada lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias, ferrovias ehidrovias federais.
Necessário observar que “patrulhamento” é uma dentre as modalidadesde Policiamento Ostensivo (permanência, diligência, escolta). Entende-se que, ao ser colocada taxativamente a palavra “patrulhamento”, as demais modalidades não poderão ser realizadas, o que é uma equivocada restrição.
– É proposta a inclusão do § 2º – A,
- 2º A O emprego da polícia viária federal poderá ser autorizado ou determinado pela autoridade da União à qual estiver subordinada, em caráter emergencial e por período determinado, nos termos da lei, para:
I – exercer a proteção de bens, serviços e instalações federais;
– um desperdício de pessoal qualificado;
II – prestar auxílio às forças de segurança pública estaduais ou distritais, quando requerido por seus governadores;
– é uma das principais missões cumpridas pela Força Nacional de Segurança;
III – atuar em cooperação com os demais órgãos integrantes do sistema único de segurança pública em estado de calamidade pública e em desastres naturais.
– já realiza este trabalho. Cita-se o trabalho profícuo realizado no Rio Grande do Sul, na última enchente.
- 2º – B A polícia viária federal, no exercício de suascompetências, não exercerá funções inerentes às polícias judiciáriasnem procederá à apuração de infrações penais, cuja competência éexclusiva da polícia federal e das polícias civis, assegurada, na formada lei, a atividade de inteligência que lhe é própria.
Caramba! Isso é texto para estar na Constituição?
- 7º Lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos integrantes do sistema único de segurança pública e defesa social, que atuarão de forma integrada e coordenada, em conformidade com as diretrizes da política nacional de que trata o art. 21, caput, inciso XXVII, de maneira a ampliar sua eficiência e eficácia.
Ao invés de sistema único de segurança pública e defesa social, convém “sistema policial federal”, ficando Estados e municípios com a autonomia para realizarem seus respectivos sistemas policiais.
Na oportunidade, a exemplo de CNJ, CNMP e outros, as instituições, órgãos, entidades que realizam a atividade policial ressentem-se da falta de um Conselho Nacional de Polícia, o que poderia ser objeto de exame pelo Congresso Nacional.
- 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais, de natureza civil, destinadas à proteção de seus bens, seus serviços e suas instalações, conforme se dispuser em lei.
- 8º – A As guardas municipais estarão sujeitas ao controle externo pelo Ministério Público.
- 8º – B Às guardas municipais será admitido o exercício de ações de segurança urbana, inclusive o policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as competências dos demais órgãos a que se refere o caput, especialmente as de polícia judiciária.
– embora seja um neologismo do senhor ministro Fux, entende-se o que aquela autoridade quis descrever, ou seja, atividade policial que deve ficar adstrita aos anseios basilares da comunidade. Significa dizer que a guarda municipal é um tipo de Polícia Ostensiva que realiza sua operação inicial – Policiamento Ostensivo -, não lhe sendo permitido realizar outras operações de Polícia Ostensiva, tais que Operações de Choque, Operações de Restauração, etc.
- 11 A União instituirá o Fundo Nacional de Segurança Pública e o Fundo Penitenciário Nacional, com o objetivo de garantir recursos para apoiar projetos, atividades e ações nessas áreas, em conformidade com a política nacional de segurança pública e defesa social, os quais serão distribuídos entre os entes da Federação, na forma da lei, vedado o seu contingenciamento.
Consta que o Fundo Nacional de Segurança Pública foi criado pela Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, revogada pela Lei Nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, que dispõe sobre esse Fundo, estando em vigor.
Já o Fundo Penitenciário Nacional, foi criado pela Lei Complementar nº 79, de 7 de janeiro de 1994 e, atualmente, está no âmbito do MJSP.
Indaga-se: constitucionalizados, que efeitos positivos irão produzir?
Ao final da proposta, há algumas prescrições que dizem respeito a órgãos específicos, mas que a liturgia da Constituição dispensa seu apensamento.
Concluindo, paira um sentimento de frustração! Esperava-se uma profunda e abrangente estruturação do problema, da qual resultariam propostas, de fato, efetivas, cuja execução não precisaria ser, necessariamente, simultânea. Fundamentalmente, obedeceria a um cronograma de prioridades, do qual, por certo, algumas propostas dessa PEC poderiam estar incluídas. Enfim!…